4 de julho de 2012

O Homem Não Foi Enganado

Quando menino de escola, ainda nos primeiros anos do curso primário, costumávamos ouvir os garotos de mais idade e mais adiantados comentar pontos da sua matéria escolar. Nós os víamos e ouvíamos discorrer com desenvoltura sobre um ponto de ciências que diziam chamar-se “a água nos três estados.” Quando chegou o tempo em que também deveríamos estudar “a águas nos três estados,” ficamos sabendo que se tratava dos três estados físicos da água: líquido, sólido e gasoso. Encantou-nos o assunto. Achávamos maravilhoso como esse corpo líquido, quando debaixo de certas influências, podia passar para o estado sólido, ou para o gasoso, podendo esse fenómeno dar-se inversamente também.

Hoje, quando consideramos a experiência do homem sobre a Terra, ocorre-nos instintivamente compará-la com aquele ponto de ciências de nossa infância escolar. Descobrimos que também o homem, elemento tão inconstante como a própria água, tem conhecido três estados específicos: o estado de santidade, o estado de pecaminoso e o estado de graça. É a isto que o Dr. Young autor de Night Thoughts, chamava de “base triangular” da sua fé cristã.

O estado de santidade foi o estado edénico, que durou tão pouco. Nesse período encontramos a criatura humana saida das mãos do Criador, em absoluta inocência e pureza. O homem desconhecia o mal, embora
desconhecesse igualmente o bem, no sentido em que nós, humanos, costumamos considerar o bem, isto é, comparando-o com o mal. O bem que o homem conhecia era o bem absoluto, que não adquire sentido só em termos de comparação com o mal.

Desta fase encantadora da experiência humana, quando o homem ostentava as insígnias de um caráter impoluto e trazia no porte a marcada evidência de um físico não degenerado, desse glorioso período da história humana fala a inspirada escritora Ellen G. White, nos seguintes termos: “Ao sair o homem das mãos do seu Criador, era de elevada estatura e perfeita simetria. Seu rosto trazia a rubra coloração da saúde, e resplendia com a luz da vida e com alegria. … Sua natureza estava em harmonia com a vontade de Deus, e sua mente era capaz de compreender as coisas divinas. Suas afeições eram puras; seus apetites e paixões estavam sob o domínio da razão.” – Patriarcas e Profetas, pág. 37.

Neste primeiro estado de felicidade humana, era o homem integral, e ostentava as mais nobres qualidades. Sua felicidade era consequência de sua comunhão com Deus, e esta comunhão podia ser mantida ininterruptamente. O homem possuía santidade de impulsos, porque bebia da própria Fonte de santidade. Todo o seu ser estava impregnado da divindade, porque o seu caráter era um traslado do caráter do Criador. Não havia a insatisfação, porque só há insatisfação onde há ambição não satisfeita, e o homem desconhecia outra ambição que não fosse fruir ao máximo da presença de Deus.

Dotado de Suficiência para Vencer

Adão, como todos os outros seres morais de Deus, fora criado dentro dos limites de uma perfeição relativa, para que se desenvolvesse e alcançasse a perfeição absoluta pertinente à categoria dos seres criados. Mas dentro dos limites dessa perfeição relativa, o homem era livre, e sentia-se seguro. Não podemos imaginar que Deus houvesse criado o homem sem dotá-lo de recursos todo-suficiente, dos quais poderia servir-se na defesa da integridade de seu caráter santo. Ele seria dentro em breve submetido a uma prova severa, e os recursos de sua defesa não poderiam ser menores que o peso da própria prova. Mas conquanto livre e seguro, essa segurança e essa liberdade não podiam dispensá-lo de exercer o sagrado direito de escolha. Na verdade, uma pessoa só é inteiramente livre se puder escolher deixar de sê-lo. Só há absoluta liberdade onde há direito de escolha, inclusive a escolha de abrir mão da própria liberdade. Mas não se pode confundir liberdade com licença, ou ausência de lei. As melhores formas de liberdade encontram-se nas organizações democráticas que são, como sabemos, regidas por leis que criam o equilíbrio e favorecem o triunfo da razão e da justiça. Por isto se diz que a liberdade de uma pessoa termina onde começa a de outra. Ilustremos: O sistema de taxas e impostos numa democracia, por exemplo, visa o bem geral dos cidadãos, pois esses tributos são devolvidos à comunidade na forma de benefícios públicos. Assim a sonegação de impostos é lesiva à comunidade, e ninguém poderá queixar-se de que não é livre porque seja constrangido a pagar impostos. Seria malbaratar a própria liberdade ao recusar-se a essas obrigações legais. Quem assim interpretasse a liberdade haveria de sujeitar-se a sanções inevitáveis.

Feitos os devidos ajustamentos, poderíamos aplicar à condição do homem no Éden antes do pecado os princípios ligeiramente considerados acima. Deus reclama de todos os Seus filhos obediência consciente e voluntária. Consciente, porque os homens devem compreender a vantagem dessa obediência. Voluntárias, porque poderão recusar-se a ela, sujeitando-se às consequências, como é óbvio.

Prova de Obediência – Uma Necessidade

Falando em termos humanos – a única maneira de ajustarmos o nosso raciocínio a um assunto que supera nossa capacidade de percepção – devemos nos lembrar de que quando uma pessoa tem muito que lucrar em sua relação com outra, é difícil saber até onde essa associação vai isenta de interesse. Esta é a melhor maneira de entendermos a justiça de submeter o Criador as Suas criaturas a uma prova de obediência. Não é o interesse egoísta que deveria impelir os homens a obediência ao Criador, mas a singela alegria que vem da adoração e culto ao Senhor de todos os mundos. Ora, Adão fora posto como governador do domínio terrestre de Deus. Não poderia parecer aos anjos e habitantes dos outros mundos – eles não são omniscientes – que a obediência do súbdito da Terra estivesse mesclada por qualquer laivo de interesse que não o amor em si? Deus não necessitaria de uma prova visível de obediência, pois Ele é omnisciente, mas os habitantes dos outros mundos criados por Deus deveriam ter pleno conhecimento da natureza voluntária e amorável da obediência prestada pelo súbdito da Terra ao seu Soberano e Senhor.

O Princípio Ilustrado Na vida de Jó

Uma bela e tocante ilustração deste princípio divino de obediência desinteressada, temo-la na experiência do patriarca Jó. Este servo de Deus, conquanto possuindo as bençãos de uma abundante riqueza (Ver o capítulo primeiro do livro de Jó), amava ao seu Criador entranhadamente e com inteireza de alma, independente da fabulosa fortuna que o Céu lhe provera.

Satanás viu em Jó uma oportunidade para desafiar a Deus e fazer ao mesmo tempo sofrer um servo do Senhor. “Porventura teme Jó a Deus debalde? Porventura não o cercaste de bens?” Foi a maliciosa e perversa insinuação do inimigo. “Mas estende a Tua mão,” prosseguiu o diabo, “e toca-lhe em tudo quanto tem, e verá se não blasfema de Ti na Tua face!” Jó 1:9-11.

Estava armada uma situação de constrangimento moral para o Criador. Satanás reclamava o pleno domínio do mundo, sob a alegação de que o mal triunfara na Terra. Entretanto os anjos no Céu se deleitavam no pensamento de que havia na Terra quem amasse a Deus. Mas agora o inimigo insinua que esse amor era fruto de vil interesse.

Muitos imaginam que os anjos e seres santos de Deus sabem o que vai no pensamento dos homens. Não é assim. As Escrituras deixam claro que até o momento em que Cristo foi erguido na cruz, havia
dúvida no espírito dos anjos quanto a ser realmente Satanás responsável pelas misérias da Terra. Quando, porém, viram o seu amado Comandante suspenso na cruz, e Satanás gozando a agonia do Filho do Altíssimo e declarando a seus sequazes que havia derrotado o Salvador do mundo, então os anjos velaram o rosto ante esse horror, e viram que o único responsável pelas desgraças que sobrevieram ao mais jovem mundo da criação de Deus era Lúcifer.

A dúvida, pois, ante a insinuação do maligno, instalou-se imediata no espírito dos anjos, quanto à lisura do amor que o patriarca da Idumeia parecia votar ao Senhor. Era, pois, necessário prová-lo aos anjos. Não no interesse de Deus, mas no dos seres celestiais, devia Jó passar pelo vale da sombra e pela angústia da provação.

O Senhor entregou Jó nas mãos de Satanás, para que este lhe subvertesse toda a riqueza. O patriarca fica privado dos bens, dos filhos, e finalmente da própria saúde. Só a vida lhe foi poupada. Mas em face desta tremenda prova, Jó demonstrou diante de todo o universo que é possível ao ser humano alcançar tão elevado grau de grandeza espiritual que servirá a Deus independentemente de qualquer vantagem temporal.

A mesma dúvida que assaltou os anjos no caso de Jó, deve ter ocorrido em relação com o primeiro homem. Adão devia demonstrar à vista dos anjos e dos seres santos de outros mundos, que sua obediência a Deus era estreme de qualquer vantagem material. No caso de Jó o patriarca liquidou a dúvida dos anjos, quando declarou: “Ainda que Ele me mate, nEle esperarei.” (Capítulo 13, verso 15 do livro de Jó.)

Não nos devemos esquecer de que, como Adão, as outras criaturas morais de Deus também foram submetidas à prova de obediência. No caso de Adão, essa prova foi a simples restrição à posse de uma árvore frutífera, entre milhares de que o homem poderia servir-se livremente. Não era uma árvore milagrosa, nem misteriosa ou virtuosa. Era apenas um ponto de referência que, muito compreensivelmente, Deus estabelecia para tornar concreto o princípio da obediência.

Santidade mas não Imortalidade

O estado de santidade que o homem desfrutava no Éden não era necessariamente um estado de imortalidade. A imortalidade inata é atributo exclusivo de Deus (I Timóteo 6:16.) O Criador transfere a Sua criatura, como doação, a imortalidade. Isto seria feito em relação ao primeiro homem, após o período de prova a que deveria ser submetido. O que poderia parecer precaução da parte de Deus, era na realidade manifestação de Sua sabedoria. Imaginai que o Criador houvesse outorgado ao homem a imortalidade. Não seríamos agora uma raça de eternos pecadores? Mas graças a Deus que assim não foi. A imortalidade está reservada para os redimidos de Cristo quando, após o presente estado, o Senhor fizer “novas todas as coisas” (Apocalipse 21:5), subtraindo o homem para sempre ao domínio do mal.

Diz o salmista, num passo já anteriormente citado, que o homem foi feito “um pouco menor do que os anjos.” Essa pequena diferença de posição e natureza deveria ser coberta após a prova, quando Adão estaria então em perfeita igualdade com os anjos. Jesus mesmo declarou que após a restauração de todas as coisas, os homens “serão como os anjos de Deus.” S. Mateus 22:30. O sentido destas palavras de Jesus é claro. Ele, o Filho de Deus, assumiu a posição em que o homem estivera no Éden, quando foi esmagado pela prova. Mas, ao contrário do que aconteceu a Adão, Jesus saiu vencedor. (Ver S. Mateus, capítulo 4.) O apóstolo S. Paulo diz que Jesus foi “o segundo Adão”. 1 Coríntios 15:45. Mediante o plano da salvação, a vitória de Jesus torna-se nossa. Graças a este jogo de substituição – tão estupendo que após quase seis mil anos de experiência humana ainda suplanta nossa imaginação – o homem alcança afinal a condição que devera ter alcançado no princípio, mas que malogrou por causa da queda. Já meditou o leitor nesta verdade tão sublime? Graças a interferência do mais santo dos seres, o próprio Filho de Deus, pode o homem escapar à morte eterna, ao eterno aniquilamento!

A árvore da Ciência do Bem e do Mal

Não ignoramos o juízo malévolo que pessoas mal informadas ou de mente pervertida fazem da queda do homem. A restrição ao fruto proibido é maldosamente associada à mais legítima relação entre casais, santificada e sancionada pelo matrimónio. Esquecem, os que entretecem tal malícia, que a multiplicação da espécie foi a primeira ordenação imperiosa que o Criador impôs a Suas criaturas, inclusive ao santo par edénico. O preceito divino “Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a Terra” (Génesis 1:28) antecedeu o pecado. Nessa relação honrosa é o homem elevado aos píncaros da dignificação, pois é feito co-criador com Deus. A espécie humana devia “frutificar” e “multiplicar-se,” enchendo a Terra de seres santos. A união matrimonial, pois, é uma de duas ordenanças que nos vieram do Éden; a outra, como veremos páginas adiante, foi o descanso semanal.

Fatores Morais na União Matrimonial

O materialismo insensível e frio que envolveu o mundo a partir do século XVIII, quando a crítica supôs haver encontrado meios de fulminar as Sagradas Escrituras, esse materialismo, dizíamos, declarou ser o matrimónio “uma simples fusão de células,” nivelando esse sagrado vínculo com a instintiva união dos brutos e bestas do campo.

Mas na relação matrimonial está envolvida uma série de fatores morais que exaltam a união entre um homem e uma mulher acima da pura e simples satisfação material. Só os animais se unem para a reprodução instintiva da espécie. O processo seletivo de que se servem os homens na escolha do companheiro para a vida – de maneira que certas qualidades influem poderosamente para decidir se dois jovens se casarão ou não – o apego ao lar e à família, a preocupação pelo futuro dos filhos, inclusive o desvelo pela prole após o período de aleitação – contrariamente ao hábito dos animais que abandonam os filhos após a aleitação – esta relação afetiva deveria bastar para que se tenha em conta o elevado objetivo e santidade desta união entre seres humanos, quando efetuada dentro das normas do decoro cristão e dos princípios bíblicos.

O fato de o homem ainda hoje receber com naturalidade a ideia de que deve formar o próprio lar, assumindo encargos graves e pesados, quando é notório que poderia encontrar fora do casamento certo tipo de satisfação, este fato líquida de vez com a ideia de que o fruto proibido tenha sido essa relação que, entre os seres humanos, é a mais bela, nobre e legítima manifestação de afeição e amor.

Mas retornemos ao homem em seu estado de santidade no Éden. A revelação diz simplesmente que Deus tomou uma árvore de formosos frutos, restringindo-a ao uso do casal. Por que uma árvore? Perguntará o leitor. Respondemos: A árvore não trazia em si virtude alguma. O fato moral relacionado com ela é que iria representar vida ou morte, felicidade eterna ou eterna ruína para o homem.

Os que temos o encargo de orientar e educar nossos filhos, muitas vezes lançamos mão de processos diversos a fim de provar-lhes a obediência, da mesma forma como Deus usou uma árvore do jardim. Procuremos ilustrar este fato:

Um rico fazendeiro chamou um dia seu filho mais velho e lhe disse: “Meu filho, eu me retiro para uma longa viagem. Tracei alguns planos de melhoramentos para a fazenda, e se os executares fielmente, segundo a minha vontade, ficarás como senhor absoluto de todas as minhas propriedades.”

O jovem agradeceu, radiante e comovido, tão grande demonstração de afeto paternal, prometendo proceder segundo o desejo do pai. Quando este se ausentou, o filho tomou os planos de melhoramentos da fazenda e os foi executando segundo constavam na planta. O paiol devia ser demolido e erguido mais acima. O filho assim fez. A estrebaria devia ser derrubada e construída no mesmo lugar. E assim foi feito. Uma a uma as instruções paternas iam sendo executadas à risca. Mas chegou a vez do poço de água. Este devia ser aberto num ponto tão fora de propósito, que o filho pensou: “Papai traçou muito bem todos os planos, menos o que se refere ao poço. Quem não está vendo que ele deve ser aberto próximo a estrebaria, de modo que se torne fácil a lavagem das cavalariças e cocheiras? Nada justifica este poço no lugar onde meu pai o indicou.”

Assim pensando o jovem abriu o poço junto à estrebaria. Quando o pai retornou da viagem, abraçou o filho e saíram juntos a ver a obra executada. Tudo estava no seu lugar, o que muito alegrou o velho pai. Mas quando chegou a vez do poço, o sembante do progenitor se anuviou. Ele olhou com tristeza para o filho e disse:

- Meu filho, tu não executaste uma só de minhas determinações.
- Como assim, meu pai? – Interrogou o jovem cheio de surpresa – Não está a estrebaria no seu lugar? O paiol e tudo o mais? Só o poço deixou de ser aberto onde pediste.

- Meu filho – acrescentou o pai – tu puseste a estrebaria, o paiol, a cavalariça, nos lugares por mim indicados, porque também achaste que estavam bem aí. Bastou que uma coisa não concordasse com o teu ponto de vista, para que deixasses de executá-la segundo o meu desejo. Não, meu filho, tu não fizeste a minha vontade, mas a tua vontade.

O aparente absurdo da determinação paterna não deveria obstar a implícita confiança que o filho devia depositar em seu pai. Deus procedeu assim em relação a Adão. Assim como o espírito de uma criança não pode aprender os propósitos da mente paterna, Adão não estava em condições de poder discutir uma determinação divina, mesmo que esta lhe parecesse absurda ou abusiva. Ele era um infante em face da sabedoria e amor de Deus. Uma criança, ao ver o pai lançar ao solo a semente para a futura colheita, poderá supor estar ele aturando fora o pão da família. Mas essa criança, se possui suficiente confiança em seu pai, conformar-se-á com o pensamento: “Papai sabe o que faz.”

Não Tinha Motivos para Duvidar

Nosso primeiro pai, antes de ceder sob a opressiva tentação de partilhar com Eva do fruto proibido, já havia experimentado a excelência do amor divino. Ele mesmo fora objeto de solícito cuidado do pai celestial. O Senhor lhe conhecia as mais íntimas necessidades e anseios, e a tudo satisfizera. Quando Adão olhava para os animais, cada um acompanhado do outro par, experimentou a intensa necessidade de companheirismo; e o Senhor ternamente lhe proveu a outra metade do coração. Ele havia visto também como Deus dispusera a criação em tal ordem que todas as necessidades humanas ficassem plenamente satisfeitas. Não tinha, pois, por que duvidar da bondade divina. Demais disto, o Senhor dotara Adão de recursos suficientes para poder fazer face a qualquer sortilégio tentativo de Satanás. Fosse qual fosse a natureza da tentação que o assaltasse, ele estava em condições de sobrepor-se a ela. Adão estava fora da possibilidade de ser iludido.

Adão não foi Enganado

No capítulo da queda do homem, segundo a revelação bíblica, há algumas considerações que não podem ser passadas por alto. Embora não possamos entrar em minúcias e penetrar os mistérios que envolvem a intromissão do pecado no mundo, há uns tantos pontos que requerem alguns esclarecimentos, visto não estarem com eles familiarizados muitos que nunca tiveram um contato mais demorado com as Sagradas Escrituras.

A maioria dos que não estão afeitos ao estudo da Bíblia têm a idéia de que o primeiro homem, Adão, tomou do fruto proibido supondo encontrar nele aquela virtude maravilhosa que, segundo dissera o enganador, abria o entendimento. Eva, esta sim, caiu em semelhante engano. Não porém o homem. O apóstolo S. Paulo afirma expressamente que “Adão não foi enganado.” I Timóteo 2:14. Ora, se Adão não foi enganado, segue-se que ao conformar-se em tomar do fruto proibido que a esposa lhe oferecia, não ignorava estar lançando na desdita toda a espécie terrena. Analisemos, porém, o relato da queda do homem, tal como se encontra no capítulo 3 de Gênesis, e procuremos sentir como este problema ter-se-ia apresentado a Adão.

Satanás, servindo-se da serpente como meio de atrair a atenção da mulher, aproxima-se de Eva. O santo par já havia sido anteriormente informado de que o rebelado Lúcifer, havendo sido expulso do Céu, escolhera a Terra como seu novo habitat. Se o inimigo, pois, se tivesse mostrado aos olhos de Eva como um formoso anjo, como de fato era, qualquer afirmação que fizesse despertaria suspeitas. Servindo-se da serpente, afastaria o perigo de pôr a perder o próprio plano. Deve ter sido precisamente o fato anormal de ver um animal dotado de voz o que levou a mulher a entabular conversação com o adversário. Teria sido impossível a Satanás usar a serpente como porta-voz? Claro que não; deve ter sido mesmo mais fácil que a um ventríloquo produzir com perfeição a sua arte.

Uma vez havendo captado a atenção admirada de Eva, Satanás (por intermédio da serpente) lança uma pergunta: “É assim que Deus disse: Não comerás de toda a árvore do jardim?” Verso 1. (Grifo nosso)

Fingindo-se admirado de que Deus houvesse proibido ao santo par o servir-se dos saborosos frutos do jardim, Satanás desejava apenas encaminhar o pensamento de Eva para a única árvore que lhes era vedado tocar. Com a expressão “toda a árvore do jardim,” o enganador estava deliberadamente ampliando ao máximo uma insignificante restrição, e isto não poderia deixar de surtir o efeito desejado. Eva saiu em defesa de Seu Criador. “Do fruto das árvores do jardim comeremos,” disse ela; e isto era como se estivesse a dizer:

- Temos a nossa disposição todas as árvores frutíferas do jardim. São abundantíssimas e variadas, e Deus, na Sua imensa bondade, nada nos vedou, a não ser apenas uma, pois produz a morte.

A Dúvida dentro do Espírito da Mulher

Sabendo que a árvore da ciência do bem e do mal produzia a morte, Eva ignorava contudo o que fosse morrer. Deus dissera: “Nele (no fruto) não tocareis, para que não morrais,” mas Eva desconhecia o que fosse a triste experiência da morte. O inimigo serviu-se maravilhosamente desse desconhecimento. “Certamente não morrereis,” disse, ao mesmo tempo que tomava um dos formosos frutos e o colocava nas mãos da mulher.

Eva deve ter ficado a olhar apavorada para o fruto proibido, esperando cair fulminada, pois o Senhor dissera: “Nele não tocareis, para que não morrais.” (Verso 3). A mulher surpreendeu-se ao perceber que nenhum mal lhe sucedera com o tocar o fruto. Satanás acabara de lhe dizer: “Certamente não morrereis,” ao contrário, insinuara que teriam uma vida mais gloriosa, e experimentariam as mais maravilhosas sensações que lhes adviriam com o conhecimento do bem e do mal. Vendo que o tocar o fruto não lhe produzira a morte, como Deus afirmara, a dúvida, a dúvida mortal, penetrou pela primeira vez o espírito da esposa de Adão.

Tivesse a mulher neste momento decisivo reunido toda a sua vitalidade e energia e fugido para junto de seu marido, e não estaríamos aqui a escrever estas palavras, pois outra seria nossa história. Desgraçadamente, porém, assim não sucedeu. Eva pôs-se a raciocinar que se conhecimentos tão maravilhosos como só Deus os possuía, podiam ser obtidos mediante o servir-se de uma das árvores do jardim, o Criador fora astucioso e egoísta privando-os dela; utilizara habilmente a ignorância deles, amedrontando-os com o fantasma da morte que, a bem se ver, não existia.

Eva, em meio a tumultuosos pensamentos, olha para a serpente e vê que esta saboreia os frutos da árvore. Então o animal lhe diz que foi graças ao fruto miraculoso da ciência do bem e do mal, que lhe adveio o dom da fala. Isto conduziu a mulher à decisão final. Ela levou o fruto à boca e comeu dele um pedaço; suas dúvidas foram robustecidas. Acabou ingerindo o fruto todo. Maravilha! Comera o fruto e não obstante continuava viva! Sim, agora compreendia que poderia comer quantos quisesse, pois ele só poderia fazer bem. Ah, por que a serpente não lhes abrira os olhos há mais tempo?

Em Face da Prova

Havendo comido o primeiro fruto, e continuando a sentir-se em pleno vigor da saúde, é de supor que Eva começasse a colhê-los e a comê-los avidamente, a fim de chegar depressa a ser como Deus, conhecendo o bem e o mal, conforme a serpente lhe asseverara. E depois de haver ingerido vários, tomou alguns deles na mão e correu feliz a levá-los ao marido. Eis como a inspiração, com a sua característica brevidade, narra a mais trágica história de todos os tempos: “E vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela.” Génesis 3:6.

“Ele comeu com ela.” As Escrituras não entram em comentários quanto à luta que Adão teve de travar consigo mesmo, antes que decidisse acompanhar a esposa aos domínios da morte. Vendo diante de si a companheira que, sorridente, lhe estendia o formoso pomo, Adão sentiu uma profunda angústia. Compreendeu de imediato que o inimigo conseguira seduzir Eva. De acordo com a indicação divina, sua companheira muito amada tinha sobre si impendente a sentença de morte. Adão, ele sim, sabia o que era a morte, pois tinha sobre seus ombros o futuro de uma humanidade em embrião. Como responsável pelo destino da raça humana, ele fora informado que morte era aniquilamento, isto é, precisamente o contrário de vida. Eva, pois, deveria receber a sentença fulminante. Acompanharia ele a esposa no trágico destino, ou permitiria que ela revertesse sozinha ao pós de onde viera, ao nada, à inexistência, salvaguardando o glorioso destino da raça?

Falta de Confiança na Sabedoria de Deus

Adão está agora posto ante o fato consumado da transgressão de Eva. Parece-lhe impossível poder viver sem sua adorável companheira. Não podia conformar-se com o pensamento de que sua linda esposa devesse deixar de existir, ficando ele sem o gozo de sua companheira amorável. Afinal Adão decide lançar sua sorte com Eva. Quem sabe, raciocinava, Deus haveria de relevar-lhes essa falta. De qualquer forma, se Eva devesse morrer, ele a acompanharia na morte.

Faltou a nosso primeiro pai mais confiança na sabedoria e bondade de Deus. A transgressão tão-somente de Eva não acarretaria sobre a humanidade uma condição de pecado. Adão, e não a esposa, era o representante da raça. Só a culpabilidade dele afetaria a humanidade inteira. Embora Eva houvesse transgredido primeiro, o apóstolo S. Paulo declara formalmente que “por um homem entrou o pecado no mundo.” Romanos 5:12. Se o homem não houvesse “escolhido” pecar, Deus teria um plano para salvar Eva, como teve para salvar a ambos. A transgressão só da parte da mulher não poderia ter o mesmo caráter que da parte de Adão ou de ambos. Mas de qualquer forma, o que interessa é o fato concreto, e este é a dolorosa realidade de que o homem decaiu do seu estado de santidade para o de pecaminoso. Mas Deus, na Sua infinita misericórdia, veio em socorro de Seus filhos desobedientes e rebelados, e ali mesmo, no princípio cenário da transgressão, deu-lhes a conhecer o plano da libertação deles, plano que haveria de custar um preço infinito, mas do qual o Céu não recuaria.

Carlos A. Trezza, A Reconquista do Homem